quarta-feira, 30 de agosto de 2017

FELICIDADE (Vicente de Carvalho)

 
Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada:
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.


O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.


Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.


terça-feira, 29 de agosto de 2017

FELICIDADE CLANDESTINA







Felicidade clandestina - Clarice Lispector

Clarice Lispector
O Primeiro Beijo
São Paulo, Ed. Ática, 1996

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

domingo, 27 de agosto de 2017




QUINTAL DA POESIA

A janela do meu quarto dá para o meu quintal
E nele  cabe o universo
Aqueles muros que pensam demarcar
Os terrenos dos vizinhos e o meu
Não limitam o meu quintal
Nele habitam metáforas
E metáforas são aladas
Nada as aprisionam

Do meu quintal,
Desperta-me  o canto do galo de João Cabral de Melo Neto
Que, com outros galos, tece as minhas manhãs
À tardinha ouço o canto orquestrado
dos afinados bem-te-vis de Cecília Meireles
Quando chega a noite, o meu quintal é iluminado
Pela lua de Fernando Pessoa que brilha linda, inteira e alta vive

No meu quintal há tantas flores e árvores belas e diversas
Que mais parecem as do jardim do gigante egoísta de Oscar Wilde
Nele há crianças brincando barulhentas e felizes.
Dentre elas:
A menina que tinha medo da adultez,
O menino que brincava com o sopro divino,
O menino de Mia Couto que escrevia versos,
E o pequeno menino Deus a quem o gigante ajudou a subir na árvore.
Ah, nele também brinca a menina de Rubem Alves
Que tinha como amigo um pássaro encantado

Ah, o meu quintal,  
De vez em quando o vento de Mário Quintana beija o meu rosto
Deixa em mim o seu perfume e canta canções de amor 
De vez em quando  a chuva desfolhada por Mia Couto
Cai, beija o chão e toca nas flores, nas árvores, nas crianças, em mim.
Tudo se renova!

Neste quintal, passeia, dança e canta a poesia
Impossível seria o amor não entrar,
E sempre o desejo de Drummond
de ouvir “eu te amo” repetidas vezes
Toma conta do meu ser
E assim, no meu quintal da poesia,
Os meus dias se enchem de encanto e de amor,
À luz da Palavra, eu não me perco

No meu quintal se entranham o humano e o divino
A luz e a sombra, a memória e a esperança
A vida que vivi e a que irei viver
Experimentando o amor eu não corro risco de ódio
Poetizando a vida, a esperança, o sagrado daqui do meu quintal,
Como profetiza Adélia Prado,
A poesia me salvará!

Gilmara Belmon

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

A JANELA DA CASA DA AMIZADE



Na casa da amizade há uma janela

De vez em quando um amigo abre

E me permite olhar por ela.

Hoje eu visitei esta casa

E lá um amigo iluminou o meu dia

Abrindo a  janela para mim

A vista dava para um jardim de afetos

Eu vi as flores exalando poesia

Vi a chuva fina beijando a terra

E senti um cheiro gostoso  de infância

Cada flor tinha um nome

De acordo ao sentimento que despertava:

Flor Esperança

Flor Coragem

Flor Singeleza

Flor Temperança

Flor Ternura

Muitas eram as flores

Tantos quantos eram os sentimentos que delas brotavam.

Confesso que desejei roubar a Flor Coragem

Mas contemplá-la me foi suficiente.

Tamanho o meu encantamento

Que nem percebi o tempo passar

Eu tive que deixar a janela

Pois estava na hora de partir,

Embora tivesse partido

Minha alma permaneceu encantada

Porque as flores permaneciam em minha memória

E o seu perfume me acompanhava.


 Gilmara Belmon

Foto: Júlio Santa Bárbara


terça-feira, 22 de agosto de 2017


A LUZ


Há uma luz brilhando

E há pessoas que não veem

Não veem a luz

Porque escolheram dar visibilidade

À escuridão

Não conseguem ver a luz

Porque não sonham



A luz brilha pouco

Para quem sonha pequeno

Brilha mais ou menos

Para quem sonha mais ou menos

E brilha muito

Para quem sonha grande

A luz brilha para cada pessoa

Conforme a medida do que cada uma sonha

Conforme a medida do que cada uma vê

E cada pessoa vê conforme onde seus pés pisam


Qual o lugar de quem não vê a luz brilhar?

Gilmara Belmon

domingo, 20 de agosto de 2017

ANINHA E SUAS PEDRAS




Hoje, Cora Coralina completaria 128 anos! O nosso Blog Colcha de Retalhos irá homenageá-la ao longo desta semana. Eis um pouco da sua biografia:


Cora Coralina, pseudônimo de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas nasceu na cidade de Goiás, no dia 20 de agosto de 1889 e faleceu em Goiânia, no dia 10 de abril de 1985), foi uma poetisa e contista brasileira. Considerada uma das mais importantes escritoras brasileiras, ela teve seu primeiro livro publicado em junho de 1965 (Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais), quando já tinha quase 76 anos de idade.

Mulher simples, doceira de profissão, tendo vivido longe dos grandes centros urbanos, alheia a modismos literários, produziu uma obra poética rica em motivos do cotidiano do interior brasileiro, em particular dos becos e ruas históricas de Goiás.



  Fonte:https://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina


Um de seus poemas que mais gosto:


Ofertas de Aninha (aos moços)
Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.
Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.

Cora Coralina
  

ESCREVER E OFERTAR

Trago dentro de mim uma sede de justiça, É por isso que, paradoxalmente, Meu ser transborda de esperança. A indignação me acompanha t...